algarve - notas soltas
não deixa de ser estranho que em 3 meses de blogagem, esta seja a primeira referência ao algarve. isto é certamente sinal da difícil relação que tenho com a região (para mim era um país) que me viu nascer. todos os meus avós eram algarvios, à excepção de uma avó galega, de que eu tinha e tenho imenso orgulho. quando eu era adolescente, considerava-me em primeiro lugar cidadão do mundo, em segundo algarvio e só em terceiro português. sempre tive orgulho da nossa especificidade dentro do todo nacional, o facto de termos sido reino dos algarves, dentro da coroa portuguesa, até há menos de um século, e a carga cultural herdada da civilização árabe. imaginava que seria possível uma cultura algarvia viva, cruzando as tradições europeias e árabe e projectando-as para o futuro. imaginava faro como uma grande cidade no futuro. isto foi antes de ir para lisboa. na capital do império, para onde tive que ir por ainda não haver cá universidade, descobri novas realidades, vi a pequenez e a insignificância da minha querida região. finalmente, quando fui viver para o norte do país, apercebi-me do mito algarve como colónia de férias, sentia-me quase como um estranho em terra estranha, quando me perguntavam o que fazia um algarvio alí, por aquelas latitudes. mas portugal entranhou-se-me. não sou mais mais algarvio do que português.
da minha geração, fomos poucos os que regressámos. a maior parte de nós assentou arraiais nas cidades para onde fomos obrigados a emigrar para prosseguirmos a nossa formação académica. não pensava voltar, mas aconteceu. e durante os anos que estive fora, este algarve mudou consideravelmente. estou a falar dos anos 80 e da primeira metado dos anos 90. o turismo selvagem e a desordem urbanística tomaram conta de quase tudo, as vilas cresceram até cidades, prédio após prédio, sem espaços verdes ou qualquer planeamento que não fosse o da especulação imobiliária. o algarve foi vendido a retalho a não algarvios, que mais do que o amor à terra, tinham amor ao dinheiro fácil, quanto mais melhor. dirigentes autárquicos mal preparados, com vistas curtas e bolso aberto, completaram o quadro.
nos tempos em que o algarve vivia da agricultura e das pescas, a burguesia que controlava essas actividades fixava-se principalmente no barrocal e nas cidades. os terrenos à beira mar, improdutivos, estavam na posse dos "ramos mais fracos" das famílias. muitas vezes pessoas sem qualquer escolaridade ou formação, facilmente manipulável. muitos desses terrenos foram vendidos por tuta e meia.
continuo a sentir esta terra, este mar e esta areia entranhados na pele.
5 comentários:
Olá Nélio,
começaste o blog mais ou menos, na mesma altura que eu, já dá para andar sem rodinhas.
Quanto ao post : O Algarve
è o sitio onde eu gostava de viver. Passei os melhores momentos da minha vida em Vilamoura e arredores...desde miudo, muito miudo mesmo, num Algarve que já não existe.
Mesmo assim, é o sitio onde apenas tenho exelentes recordações.
como «imigrante» aprecio, apesar de tudo, a diversidade humana e natural desta terra...
Boa aula de história. Gosto do Algarve no Inverno. Gosto do Algarve não turístico. Gosto da zona de Sagres, em que o mar é selvagem e o Algarve se mistura com a Costa Vincentina. Bom ler a tua perspectiva, de quem conhece. Mais para Norte, o Algarve é um desconhecido. E é pena. Um abraço.
maria, mais para o norte o algarve não é um desconhecido, é um mito. lembro-me de um algarve onde quase tudo era tão selvagem como a costa vicentina, que também é algarve até odeceixe.
moises, felizmente esta terra tornou-se diversa de gentes, acabou por atrair muita gente muito diferente, mas isso dá para outro post.
migvic, há vários algarves que já não existem e há outros que só agora começam a existir. terra de muitas passagens, terra de muitas mutações.
Quando eu tinha 7 anos passava longos verões na casa de um tio avô católico, machista e tudo, na R Teófilo Braga, em Faro. Ele cultivava espinafres num pátio fresco, tinha uma assoteia onde o por do sol era muito bonito, havia osgas nas redes mosquiteiras das janelas e umas comidas com tomate, orégãos e peixe fresco como eu nunca havia saboreado e de que, se me concentrar, ainda consigo sentir o perfume. Era casado com uma senhora Algarvia que dizia "os mês meninos" de mim e dos meus primos que levava, bem comportados, em fila indiana, sapato engraxado e soquete branco à missa da tarde quente de domingo.Essas missas nunca esquecerei. A pele pouco habituada ao Sol, queimava-me vermelha sob as mangas tufadas do vestido. Cheirava a insenso, a cera e a Bien Etre. Ouvia-se o roçagar dos leques das senhoras. Eu e a minha prima recebemos leques pequenos e brancos com a gavidade de quem recebesse algum amuleto iniciático.Eu invejava secretamente a mantilha de renda branca que a minha prima recebera, essa sim verdadeiramente iniciática, atestando da sua condição de púbere, já com a "profissão de fé", mas ao menos eu recebera o leque e, se olhasse com atenção, cedo aprenderia a usa-lo com a mesma elegância das mulheres.
Os meus tios avós tinham uma "comadre Joana": Senhora idosa e viúva com quem se encontravam nas tardes de Sábado numa aldeia muito branca, com pérgulas de caniçal, lagedos pintados com uma lavagem vermelho vivo aplicada de esfregona em torno de um velho mas imaculado poço com sua nora, embora já sem mula. As estradas eram convexas e estreitas, rés vés das soleiras das portas onde as mulheres da minha terra diriam que se podia lá comer de tão limpinhas. Essa limpeza fascinava-me, a mim beirã que ia para a escola com a bosta dos paralelos da rua agarrada às tamancas.
O meu pai, orgulhoso mestre escola, esplicava-me as orígens árabes disto e daquilo, a picota e os laranjais, mais a lenda da princesa nórdica e suas amendoeiras em flor.
Aos 18 anos, muito longe da mantilha de renda branca, e ainda não retornada para o leque, fiz a costa Algarvia de mochila, a pé e à boleia. Dormi na praia e fui acordada pelos pastores alemães da GNR, e tudo o mais a que davam direito a mochila e as boleias. Gostei mais ainda que da missa de domingo à tarde, em Faro aos 7 anos de idade.
Voltei ao Algarve há poucos anos e fui à aldeia da Comadre Joana. À soleira das portas não havia já estradas convexas. Aliás as estradas passavam ao nível das pérgulas de caniços, e as casas, já não tão brancas, estavam relegadas a caves das vias rápidas.
Procurei os areais discretos onde caminhara mais que passos nas areias e tinham-se ido embora.
Tinham desaparecido demasiadas coisas belas ao mesmo tempo e eu fiquei muito triste.
Felizmente não farão a ilha artificial. Valha-nos isso.
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