terça-feira, abril 24, 2007

valeu a pena

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valeu a pena? faz-me imensa confusão ouvir hoje em dia certas pessoas falarem do 25 de abril como se tivesse sido um mau acontecimento na história do país. faz-me confusão também todo o folclore institucional que faz desta data a data oficial do actual regime democrático, com toda a pompa e circunstância e respectiva feira de vaidades. faz-me ainda confusão ouvir as novas gerações confundir o 25 de abril, o 1 de dezembro, o 5 de outubro e sabe-se lá que mais. a revolução que depois se chamaria dos cravos apanhou-me prestes a fazer 12 anos. antes disso, nunca em minha casa se tinha falado de política, era perigoso. numa idade propícia a descobertas, descobri que os meus pais eram democratas, descobri que um dos meus vizinhos era informador da p.i.d.e./d.g.s., descobri a sensação do povo em comunhão e a euforia das primeiras manifestações. descobri toda a trágica história da polícia política, das torturas e das deportações.

tenho ideias vagas dos tempos do estado novo. lembro-me de ver o enterro de salazar pela televisão e das "conversas em família". lembro-me de nos rirmos, miúdos, dos pobres soldados apanhados nas malhas da guerra colonial enviando as suas mensagens de feliz natal e ano novo cheio de "propriedades" para toda a família que aguardava coração nas mãos por aquele breve contacto numa qualquer aldeia no interior. era um desfilar de rostos anónimos e cansados, debitando frases com tempo contado. lembro-me dos olhares preocupados dos meus pais à medida que o meu irmão mais velho crescia e se aproximava da idade de ser alistado.

cresci pois em liberdade, na euforia e na ilusão de um país fraterno, justo, livre. de um país culto, de um povo esclarecido, onde não mais haveria fome, onde a justiça social seria uma realidade.

não sei o que é não ter liberdade de expressão, não poder exprimir livremente as minhas ideias e as minhas concepções da vida, do país e do mundo. não sei o que é ter que falar em surdina para comentar a realidade política ou social, viver vergado por um poder que mina toda a sociedade com uma rede infernal de informadores e bajuladores. só por isto, valeu a pena, sim.

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foto de eduardo gageiro, quartel da p.i.d.e, 25 de abril 1974

9 comentários:

astuto disse...

Claro que valeu a pena! Portugal está muito melhor, incomparavelmente melhor. Não estamos num país perfeito, mas é infantil dizer-se, como eu ouço muita gente dizer, que "Portugal é assim, não tem emenda!" Não tem emenda o quê? Tudo tem solução, tudo é resolvido... Pode levar mais tempo, mas chegamos lá! Já ultrapassamos tanta coisa e já não nos lembramos! Eu acredito no meu país. Continuo a acreditar que o meu país vai ser o país fraterno, justo e moderno que Salgueiro Maia sonhou!

25 de Abril Sempre!

Maria Romeiras disse...

Bela foto de Gageiro, belo texto. Valeu a pena, Nélio, ou não estaríamos por aqui a escrever... Um abraço.

Anónimo disse...

Um ajuntamento de 3 pessoas falando tranquilamente num qualquer passeio, poderia ser "dispersado" por um qualquer polícia ou esbirro do antigo regime.

Sabiam disso? Era lei!!!

Anónimo disse...

então não valeu?! sou um bocado mais nova (alguma coisa!), mas tenho memórias semelhantes.

Anónimo disse...

astuto, eu também acredito no meu país, por mais crítico que seja em relação a certos aspectos...
um abraço

maria, dizes bem. ou não estariamos aqui a escrever.
beijo

Anónimo disse...

minderico, obrigado pela transcrição na sua página, que já visitei. é uma honra.~
abraço

Anónimo disse...

Maria da Piedade era uma criança que via televisão.
Via concursos em que as belezas em fato de banho, virando-se de frente e de rabo, de lado e do outro lado diziam à locutora que queriam ter filhinhos e uma carreira de hospedeira de bordo. Nos Dias da Mãe, os pais tinham oferecido máquinas de lavar e as filhas já podiam ir à televisão mostrar o rabo e as pernas a preto e branco. Antes tinham prestado provas de culinária e de arranjos domésticos vários e isso já limpava qualquer suspeita de imoralidade que o programa pudesse levantar nalguma sotaina. Ficava assim claro o sentido do progresso da coisa: as mulheres tinham passado de propriedade de produção rural especializadas em filharada, hortas, galinheiros e sabão clarim para serem também objecto consumidor e de consumo. A propriedade passara a ter uma mais valia comercializável. A garota não compreendia mas aborrecia-se que é uma forma das crianças sentirem.
Via também anúncios, que se chamavam então reclames. Havia um ao sabonete REXINA, que até cheirava muito bem e era costume usar-se lá em casa até nas gavetas para pôr a roupa branca perfumada. Nesse reclame, uma jovem passava o serão a ler junto a uma mesinha com um candeeiro de pé. Uma voz dizia que havia problemas com o odor corporal e, com o tal sabonete, a jovem surgia rodeada de outras raparigas e rapazes com ar feliz. A garota não compreendia o porquê de um serão a ler longe da tagarelice ser imagem escolhida para se opor à ideia de felicidade. Mas o usual naquele lugar e naquele tempo era tomar banho duas vezes por semana e isso pode explicar parte da incompreesão.
O reclame da GODIVA era mais hermético que o mistério da santíssima trindade: uma jovem loira cavalgava num cavalo branco na rebentação das ondas sobre a praia e os planos sugeriam que estaria nua. Ouvia-se uma música e uma voz que entoava GOOOODIIIIIVAAAA e pronto, acabava. A miúda andou que tempos para perceber que aquilo anunciava pensos higiénicos. Compreender para que serviam aquelas compressas de fundo de plástico e cerca de dois centímetros de espessura de algodão comprimido ainda lhe tomou algum tempo mais. Os olhares trocados entre os adultos quando tal reclame passava eram um sinal claro de que se tratava de um daqueles assuntos que as pessoas sérias não discutiriam. Nos escuteiros deu-lhe para sugerir que se usasse daquilo para aliviar o desconforto das alças de lona das mochilas sobre os ombros e sofreu uma galhofa.
A laca sunsilk anunciava que libertaria uma mulher que tinha uma gaiola de periquito enfiada na cabeça. A miúda percebeu que a imagem se referia ao penteado mas o que lhe escapava era a necessidade do próprio conceito de penteado. Aí a mãe compreendeu que ia tem muito que penar com aquele rebento torto.
Via umas peças no telejornal com música heróica sobre imagens duma grande barragem em Moçambique e ouvia os homens da família a dizer que “a pretalhada devia era agradecer a civilização que lhes levámos na vez de se armarem em turras”.
Maria da Piedade também ouvia outras conversas quando fingia que adormecera no banco de trás do carro. Havia a conversa sobre HOMENSEXUAIS, exactamente assim, sem gralha, que parece que já se casavam na Suécia e que cá não haveria nunca dessas coisas pois a PIDE se existia era para nos defender dessas anormalidades contra a natureza.
Ouvia que as mulheres tinham todos os meses uma coisa que era um treino para as dores do parto e perguntava-se porque não haveria também treinos para as dores de dentes que o dentista mais próximo ficava a hora e meia de automóvel e tinha umas alfaias que faziam tremer só de olhar.
Maria da Piedade tinha irmãs bebés e tinha vómitos so de ver a mãe a lavar as fraldas com cocó. Elas choravam constantemente, a mãe andava numa correria desgrenhada acudindo às refeições, às loiças, às roupas, às camas, ao pó, às meias para pontear e levantando-se de madrugada para acabar de tricotar a camisola antes da hora do emprego e antes que o frio chegasse a sério. Às nove menos um quarto, o pai saíra airoso dumas palmadinhas de after shave, deixara os restos do pequeno almoço sobre a mesa e estava à porta de casa com o carro a trabalhar, buzinando numa fúria cumpridora de horário da função pública ao serviço da nação. Daí até ao trabalho era uma litania de ralhos sobre atrasos e acusações de faltas diversas.
Maria da Piedade nasceu numa classe e num tempo em que as meninas eram baptizadas com nomes de castíssimas santas, faziam enxovais que iam depositando em arcas à medida que mostravam avanços no ponto pé de flor e nos crochés com que entretinham as tardes do Júlio Isidro a bordejar panos de loiça com inúteis cercaduras de fio matizado. Aborrecia-se tanto que o tédio é uma memória de adolescência quase tão forte quanto a memória física da ira e do desnorte de tanta dúvida somada. Ela viu tanta coisa que concluiu que tinha sido um grave erro ter nascido no género feminino. Havia na época muito mais meninas travestidas em marias-rapazes assexuais dando pontapés nas pedras do caminho para a escola básica do que agora.
Felizmente já passou tudo, já não dói nada, pronto, pronto.
Começou a passar em 25A74

Anónimo disse...

maria da piedade, eu se fosse a ti, pensava a sério na ideia de encetares um blog. a sério, não estou a ser irónico.
beijos

Anónimo disse...

nãa, o teu blog é muito mais giro do que seria um qualquer cozinhado low colesterol desse sujeita. A não ironia fica-te muito bem. Keep up with the good work e mantém o direito de admissão na casa.