sábado, fevereiro 16, 2008

balanço patriótico

nas anotações à sua peça de teatro "pátria", publicada em 1896, guerra junqueiro escreveu frases estranhamente actuais. 112 anos depois. para que não se pense que é invenção do und3rblog, pode-se conferir com o texto original, disponível em e-book no site do projecto gutemberg. faço minhas (quase) todas as suas palavras. reza assim:

"Balanço patriótico:

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúsio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, bêsta de nora, agùentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, emfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,--reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;
(...)
Uma burguesia, cívica e políticamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provêm que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos
(...)
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; êste criado de quarto do moderador; e êste, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre,--como da roda duma lotaria;
A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rôlhas;
Dois partidos (...), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar (...) meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo scéptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguêm deu no parlamento,--de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar;
(...)
Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante,--o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários;
(...)
E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares,--_tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc. etc.
(...)
A burguesia liberal, mercieiros-viscondes, parasitagem burocrática, bacharelice ao piano, advogalhada de S. Bento, _morgadinhas_, _judias_, sinos, estradas, escariolas, estações, inaugurações, locomotivas (religião do Progresso, como êles diziam), todo êsse mundo de vista baixa, moralmente ordinário e intelectualmente reles,
(...)
O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroismo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria resume-se quási numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcacer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza.
(...)
Sei muito bem que o estadista não é o santo, que o grande político não é o mártir, mas sei tambêm que toda a obra governativa, que não fôr uma obra de filosofia humana, resultará em geringonça anecdótica, manequim inerte, sem olhar e sem fala.
(...)
A ductilidade, quási amorfa do carácter português, se torna duvidosas as energias colectivas, os espontâneos movimentos nacionais, facilita, no entanto, de maneira única, a acção de quem rege e quem governa. Cera branda, os dedos modelam-na à vontade. Um grande escultor, eis o que precisamos.
Há, alêm disso, bem no fundo dêste povo um pecúlio enorme de inteligência e de resistência, de sobriedade e de bondade, tesoiro precioso, oculto há séculos em mina entulhada. É ainda a sombra daquele povo que ergueu os Jerónimos, que escreveu os Lusíadas. Desenterremo-la, exumemo-la. Quem sabe, talvez revivesse! (...)"

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