sábado, julho 12, 2008

o ano de 1993

o ano de 1993 deve ser dos objectos literários mais peculiares de josé saramago. uma distopia onírica em forma de longo poema dividido em 30 partes, cada uma funcionando como uma entidade. no futuro, uma guerra, invasores, cidades conquistadas, populações dizimadas. os poucos que sobrevivem tomam dois caminhos: uns ficam prisioneiros nas cidades, outros fogem e agrupam-se em tribos que sobrevivem, em regressão civilizacional, num mundo hostíl onde são perseguidos por animais biomecânicos. é fácil estabelecer um paralelo com o 1984 de george orwell. um futuro próximo, sociedades totalitárias, os homens prisioneiros nas cidades. mas enquanto orwell centra a sua história em personagens bem individualizadas, saramago refere-se ao colectivo, sem nomear os intervenientes. enquanto orwell descreve, saramago sonha em discurso fluído discorrendo sobre a natureza humana. um excerto:


"E porque os antigos deuses haviam morrido por inúteis os homens descobriram outros que sempre tinham existido encobertos pela sua não necessidade

O primeiro de todos foi a montanha porque era ela que no seu mais alto pico sustentava o peso do céu

Aquele mesmo céu que os velhos deuses em tempos idos habitaram e donde de pais para filhos desprezaram os homens porque desprezo fora impor-lhes salvações contra a sua própria humanidade

O segundo deus foi o sol porque ensinara a redescobrir a roda embora houvesse tribos que veneravam a lua pela mesma razão

Essas porém em noites de quarto minguante ou crescente traziam os olhos baixos

Provando assim que cada tribo tem o deus que perfere e não outros

Mas a nova mitologia a isto se resumiu porque um dia houve um homem que subiu ao pico da montanha e por essa maneira se viu que sozinho levantara o céu

E outro pegou nas rodas que haviam sido o sol e a lua e lançou-as para longe onde não brilharam

Definitivamente deus só ficou o rio porque os homens vão mergulhar nele as mãos e o rosto e têm estrelas nos olhos quando se levantam

Enquanto as águas por sua vez transportam ao céu e ao sol se o há a turvidão salgada das lágrimas e do suor

E as plantas verdes que dentro de água vivem estremecem sob o vento que traz aquele cheiro de homem a que a terra ainda não se habituou"


mais um excerto:


"Quando os habitantes das cidades se tinham já habituado ao domínio do ocupante

Determinou o ordenador que todos fossem numerados na testa como no braço se fizera cinquenta anos antes em Aushwitz e noutros lugares

A operação era indolor e por isso mesmo não houve qualquer resistência nem sequer protestos

O próprio vocabulário sofrera transformações e haviam sido esquecidas as palavras que exprimiam a indignação e a cólera

Deste modo os habitantes da cidade se acharam numerados de 1 a 57 229 porque a cidade era pequena e fora escolhida para experimentação entre todas as cidades ocupadas

Dois meses depois o ordenador registava valores de comportamento e diferentes estados de espírito consoante o número que havia cabido a cada habitante

Entre o 1 e o 1000 estava o perfeito contentamento de si próprio ainda assim dividido em mil exactas pequenas parcelas

Ninguém reconhecia autoridade a quem tivesse número superior ao seu o que explica que o 57229 comesse com os cães e tivesse de masturbar-se porque nenhuma mulher queria dormir com ele

Os habitantes de 1 a 9 consideravam-se chefes da cidade e vestiam segundo as modas do ocupante

Mas o primeiro deles mandou fazer um aro de ouro que suspendia sobre a testa como sinal de poder e autoridade e hoje basta este sinal para que todas as cabeças se curvem a partir de 2

Porém só o ordenador sabe que estes números são provisórios e que dentro de vinte e quatro horas todos se apagarão para reaparecerem por ordem inversa

Processo tão bom como os animais mecânicos para prosseguir o extermínio da população ocupada

Pois todas as humilhações serão retribuídas cem por um até à morte

Enquanto os ocupantes se distraem nos espectáculos que para seu uso ainda funcionam"

3 comentários:

reb disse...

Que coisa fantástica!
Obrigada por divulgares!

Luís F. disse...

Fantástico mesmo...

Publicará brevemente um novo livro, já estou à espera!

idadedapedra disse...

munto lindo!
É tão diferente do saramago a que estou habituada...