a sombra do vento
"- E então, o que me vais mostrar hoje que eu ainda nunca vi?
- Várias coisas. De facto, o que te vou mostrar faz parte de uma história. Não me disseste no outro dia que do que gostavas era de ler?
Bea fez que sim, arqueando as sobrancelhas.
- Pois bem, esta é uma história de livros.
- De livros?
- De livros malditos, do homem que os escreveu, de uma personagem que se escapou das páginas de um romance para o queimar, de uma traição e de uma amizade perdida. É uma história de amor, de ódio e dos sonhos que vivem na sombra do vento.
- Falas como a badana de um romance barato, Daniel.
- Deve ser porque trabalho numa livraria e vi demasiados. Mas esta é uma história real. E, como todas as histórias, começa e acaba num cemitério, embora não o género de cemitério que imaginas.
Sorriu como fazem as crianças às quais se promete uma adivinha ou um truque de magia.
- Sou toda ouvidos.
Esgotei o último gole de café e contemplei-a uns instantes em silêncio. Pensei no muito que desejava refugiar-me naquele olhar fugidio que se temia transparente, vazio. Pensei na solidão que me ia assaltar nessa noite quando me despedisse dela, sem mais truques nem histórias com que enganar a sua companhia. Pensei no pouco que tinha para lhe oferecer e no muito que queria receber dela."
melhor do que eu alguma vez poderia fazer, este excerto define o livro de carlos ruiz zafón que ando a ler. devagar, saboreado, não me apetece acabá-lo, lembro-me dele de vez em quando ao longo do dia. há muito tempo que um livro não me "levava" desta maneira. a prosa poética, a eficácia dos diálogos, as encruzilhadas duma história que tem barcelona no pós 2ª guerra mundial como pano de fundo. "uma história inesquecível sobre os segredos do coração e o feitiço dos livros", como se diz na capa, por debaixo do título. para aguçar o apetite a quem ainda não leu, fica mais um diálogo:
"Riu nervosa.
- Não sei o que me deu. Não te ofendas, mas às vezes uma pessoa sente-se mais à vontade para falar com um estranho do que com as pessoas que conhece. Porque será?
Encolhi os ombros.
- Provavelmente porque um estranho nos vê como somos, e não como quer acreditar que somos.
- Isso também é do teu amigo Carax?
- Não, isto acabo eu de inventar para te impressionar.
- E como me vês tu a mim?
- Como um mistério.
- Esse é o elogio mais estranho que alguma vez me fizeram.
- Não é um elogio. É uma ameaça.
- Porquê?
- Os mistérios é preciso resolvê-los, averiguar o que escondem.
- Se calhar decepcionas-te ao ver o que há lá dentro.
- Se calhar surpreendo-me. E tu também.
- O Tomás não me tinha dito que tivesses tanta lata.
- É que a pouca que tenho a reservo toda para ti.
- Porquê?
Porque me metes medo, pensei."
9 comentários:
Muito bom.
comecei a ler no sábado!
aqui onde vivo não há livreiros dignos desse nome num raio de 70 quilómetros. Este título passou a constar da lista de compras a usar da próxima vez que for a Lisboa.
Este blog está a tornar-se uma rotina gostosa de espreitadelas diárias. Obrigada pelo serviço
Tem piada... ando à volta de um livro em que o protagonista queima livros de cada vez que acende a lareira... justificação: «Li livros durante quarenta anos da minha vida e agora vou queimando-os porque pouco me ensinaram a viver.» Pepe Carvalho «from Barcelona» dixit.
Muito bom!
Abre o apetite para uma boa leitura, boa sugestão literária, bem melhor do que aquelas que aparecem em contracapa!
1 abraço
parole, e isto é apenas um dos registos, porque o livro tem muitos...
d., espero que te embrenhes tanto nele como eu...
maria da piedade, tenho a certeza de que vais gostar, pena não estares aqui ao pé, senão passava-te o meu quando o acabasse.
moisés, coincidências da literatura catalã? nunca pensei que os livros ensinassem a viver, acho que a sua função é outra, embora de momento não me ocorra exactamente qual. será um vício? pepe carvalho, diz-me qualquer coisa, mas não estou bem a ver o quê... policial???
daniel, obrigado pela visita. é dos livros mais marcantes que alguma vez li.
:) é o alter ego de Manuel Vásquez Montalbán...
Eu sei... eu li ;) obrigada.
moises, bem me parecia. li "os mares do sul" aqui há uns tempos, mas a memória RAM já não dá para mais...
parole, pois! não percebi se o muito bom se aplicava ao livro ou ao excerto...
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