quinta-feira, abril 17, 2008

não podia estar mais de acordo, é por isso que o hugo é uma das minhas figuras de referência

"cultura universitária, cultura de massas, cultura esotérica, cultura aristocrática, cultura proletária (...). cada cultura tem os seus temas, as suas modas, os seus partidários.(...) o ideal parece-me consistir em ter professores que nos ensinem as bases, e depois fazermos nós próprios as nossas pesquisas, em total independência relativamente às ideias dominantes nos meios oficiais. na minha concepção, alguém que seja culto é necessariamente eclético: se apenas conhece o universo cultural a que pertence klingsor ou aqule a que pertence king kong, não é verdadeiramente culto. (...) o trabalho dos que contaram a história de perceval não me parece fundamentalmente diferente do trabalho dos que criaram king kong: os modos de expressão diferem, mas é o mesmo esforço de criatividade para contar uma história repleta de maravilhoso e ao mesmo tempo épica e poética. (...)

quanto a estabelecer uma hierarquia entre as diversas formas de expressão artística, isso parece-me impossível. assim, aqueles que dizem que a banda desenhada é um género intrinsecamente inferior ao romance avaliam a banda desenhada aplicando os critérios do romance, e nesse caso é evidente que não se pode senão chegar à conclusão que a banda desenhada é subliteratura. mas essa gente esquece-se, ou não sabe, que a banda desenhada tem o seu próprio código e que é apenas situando-se no interior desse código que se pode apreciá-la. (...)

essas reacções negativas vêm geralmente de mandarins da cultura de tipo universitário e nada têm de surpreendente, pois a cultura oficial é por natureza conservadora, e desde sempre desconfiou dos novos modos de expressão artística. no século 18 desprezava os romances e levou tempo a compreender que o cinema não é subteatro. acabará por se aperceber que a banda desenhada pode ser uma arte. esperemos que não ponha então a banda desenhada sob a sua tutela, erigindo-se em árbitro da sua estética e atribuindo-se o monopólio da sua exegese, o que teria como consequência fazer passar a banda desenhada de um gueto cultural para outro.

encontram-se coisas apaixonantes em cada tipo de cultura, e também muitas coisas sem interesse. o que é preciso é apropriarmo-nos do que há de mais pertinente em cada universo cultural, sem nos deixarmos encerrar em nenhum deles. é preciso ir ao fundamental. o resto são meras repetições, e portanto uma perda de tempo. fazer coexistir na minha cabeça diferentes culturas nunca me causou qualquer problema (...). só posso conceber uma vida intelectual assim, completamente livre."






hugo pratt in "o desejo de ser inútil - memória e reflexões" (entrevistas com dominique petitfaux), relógio d'água editores, 2005
imagem: hugo pratt, corto maltese - tango

6 comentários:

idadedapedra disse...

curioso, ainda ontem vinha a falar com a filha mais nova sobre o acordo ortográfico e acabámos por ir parar à banda desenhada... Aí há um acordo ortográfico próprio da banda desenhada, não há?

nelio disse...

não percebi a questão. a ortografia da bd é igual à da outra escrita...

idadedapedra disse...

ai não é não... acho eu.
Bom, se falarmos daquelas bds para putos, tio patinhas e outros, isso é óbvio. E não é tanto por serem brasileiras. É porque para dar forma ao personagem, dão-lhes sotaques e por isso escrevem tal e qual como soa. Num livro de prosa os autores não fazem isso; descrevem no texto que o personagem era de não sei onde e por isso tinha um determinado sotaque, mas não escrevem os diálogos com palavras inexistentes no dicionário.
Mesmo nas bandas desenhadas de adultos isso acontece. Bem, não tenho aqui nenhum exemplar agora mas tu que tens montes deles, vai lá verificar se dentro da bolinha da fala do personagem as palavras são exactamente como no dicionário... :)

nelio disse...

ah! ok, já percebi. sim, nesse ponto tens razão.

Maria Romeiras disse...

Fico com vontade de ler. Não, não se pode hierarquizar. E mesmo para analisar convém que se conheça e se estude. Vivemos num mundo de análises fracas e demagógicas. Fico mesmo com vontade de ler este senhor fora dos balões...

nelio disse...

maria: este livro é obrigatório para fans do pratt e não só. uma edição profusamente ilustrada com aguarelas, muitas delas feitas prepositadamente para o livro. comprei-o numa bertrand, suponho que estará disponível por aí.