recebi deste blog um desafio para um meme, tendo o conceito de paraíso natural como base. um meme está para a memória como um gene está para a genética. é algo que é transmitido, sujeito a transformações, adaptações, mutações. o meme que me foi passado, dizia respeito a tradições orais ligadas à terra, à sabedoria popular. evocava tempos em que as histórias eram transmitidas de geração em geração, à volta do fogo conciliador, à chama de candeeiros a petróleo, vem de uma terra longínqua, por detrás dos montes, no outro extremo do país, terra que como o algarve tem a tradição das amendoeiras em flôr. pontos de contacto, portanto.
podia evocar aqui o algarve da minha infância, o paraíso natural que era esta costa antes de um esbarrunto de empreendimentos turísticos aparecer como cogumelos e destruir paisagens, ecossistemas, falésias. o algarve da pequena burguesia rural, das casas com pitoril e alegretes, as visitas à dos meus avós e à dos meus tios, eu, menino de cidade, explorando a liberdade que o campo me permitia, na retoiça todo o santo dia, as loucas descidas ladeira abaixo, montado na carreta das pipas, empurrado por ou empurrando o mé'rmão, em que invariavelmente um de nós ficava escanecado depois de andar à reboleta uns quantos metros, o fascínio das pocilgas, das capoeiras e das cavalariças, das noras e das cisternas, dos fornos de cozer pão e da tiborna no dia da cozedura.
podia evocar também o tempo em que um galfarro nadar nú na maior parte das praias algarvias não escandalizava ninguém, simplesmente porque não havia ninguém para escandalizar. de vilamoura aos olhos d'água, uma caterva imensa de falésia e praia completamente desertas, de albufeira a armação de pêra, o mesmo cenário. mar, areia, bichos e mato. um mundo perdido, hoje em dia, afogado pela alcatrefa de campos de golfe, hoteis e outros catramolhos, apoios de praia e até elevadores que permitem a descida da falésia, directamente do hotel até à areia.
podia evocar tempos mais antigos, histórias de homens e de moços que partindo da terra dos marraxos atravessavam todo o algarve a pé, de caturras, para irem ceifar nos campos do lintejo.
podia inclusivamente evocar o paraíso natural que ainda é esta ria formosa, com bandos de flamingos repousando no meio das salinas, as flores da vegetação que fixa as dunas do cordão que lhe serve de protecção. ou podia seguir outro rumo e relembrar a minha avó galega, a pequena aldeia de san simon onde nasceu, o cancioneiro de lenga-lengas, histórias e trava-línguas que transportava dentro de si e embalaram muitas noites o meu sono de menino, pequenos tesouros da tradição oral que se vão perdendo, num mundo cada vez mais centrado no "novo", na tecnologia, no material e no efémero. paraísos naturais, todos eles transformados pela mão manipuladora do homem, pelo "bichinho alacre e sedento que fuça através de tudo num perpétuo movimento" tão bem descrito pelo gedeão. em vias de extinção, sujeitos à cobiça sem limites, votados ao esquecimento pela voragem do tempo.